segunda-feira, 25 de junho de 2012

Refugia-te em mim

Nunca te vi mas sei como és. Nunca te senti mas sei o que me fazes sentir. Nunca te olhei e sei como me olhas. És o meu pior pesadelo. Desaparece-me da frente e deixa-me ir contigo. Não me deixes à mercê do vento, ele come-me viva. Não me deixes aqui ao frio, ele arrasta-me para um caminho sem fim, sem fundo, sem margem. Empurra-me para dentro do teu amor. Suga-me confortavelmente. Podes até matar-me se quiseres, eu deixo que me sufoques lentamente. Só não me magoes, mata-me sem dor, com amor e sem dor. Rasga-me a roupa e rompe-me a vergonha. Obriga-me a ser eu, obriga-me a mudar porque isto não sou eu. Aquilo que fizeste de mim não sou eu. Sou outra pessoa. Sei quem sou, mas não quero ser. Sou tu e tu és eu. Dá-me de volta o meu ser por favor. Peço por favor porque sou cortês e educada. Não me mordas o coração, fala-me antes ao ouvido. Eu odeio-te, ouviste? Tens em ti aquilo que mais quero para mim. Dá-me de volta.


Macau, quem és tu?

Macau. Essa cidade metida ali entre os gigantes. Estás presa num tempo que não se conta, enraizada numa alma que não se vê, apenas se sente. Tens a vida boémia e tresloucada dos casinos, tens a calmaria do Rio das Pérolas e a serenidade da intocada ilha de Coloane. Tens as vendedoras de frutas e legumes à beira rio, mesmo a um passinho do continente. Tens os montes verdejantes das ilhotas, que respiram ar puro, o único ar puro que existe em ti. O caminho é sinuoso mas faz-se rapidamente. As ilhas não pecam pela grandeza e sempre tens a paisagem. És tão bonita que não consigo descrever-te. Tens tanto em ti que não consigo expressar-me. Assolas-me e deixas-me muda. Deixa-me falar por favor. Deixa-me mostrar-lhes o quão perfeita tu és, quanta história tens encarcerada dentro de ti. Fujo para ti quando preciso de paz, mas não sei bem porquê nem que tipo de paz é essa.
Que se danem os casinos! Quero-te tanto. Quero a tua histeria discreta, a tua felicidade serena, a tua busca incessante por tudo aquilo que ainda vais ser. Não deixes de ser porque eu não te quero deixar. Não te deixes abandonar e mantém a tua alma. Constrói o teu futuro em volta do teu passado. Preserva o Leal Senado e as ruas que dão para as Ruínas de São Paulo. Preserva as lojinhas que vendem carnes com um cheiro nauseabundo. Preserva os mendigos que passeiam de carrinho de compras em riste. Preserva tudo aquilo que me obriga a ser tua. A Caravela e todos os falsos pastéis de nata e coisas parecidas com um café expresso. Preserva as paisagens e os prédios a perder de vista, as casas que parecem barracas e as lojas de antiguidades mais antigas do que as próprias velharias. Preserva a beira rio e o contraste com um trânsito frenético. Preserva os páteos abandonados e sujos, as piscinas públicas abarrotando de pequenos chineses que gritam a plenos pulmões. Preserva os carrinhos de comida muito pouco higiénicos que ganham vida durante a madrugada, depois de noites loucas sem fim à vista. Preserva a humidade fétida que se sente a cada abrir de janela, a cada sair porta fora, a cada passeata pela baixa. 

Estás presa num tempo que não se conta. Mas afinal... Macau, quem és tu?

sábado, 9 de junho de 2012

Embaciado

Devias estar a fazer-me falta. Não fazes e eu assusto-me com a ausência do sentimento. Na esperança de te ter de novo a assolar-me todos os pensamentos, todos os cantos do meu ser, recordo a imagem de nós dois na minha cabeça. Vezes e vezes sem conta, se queres saber. Reclamavas sempre comigo por deixar a casa de banho demasiado embaciada depois de tomar banho. Como em todos os outros dias, também naquele entraste para mandares um daqueles gritos "não tomes com a água tão quente, não vês que isso até te faz mal?" e eu ignorava-te. Era sempre isso que fazia e era sempre assim que resultava.  Naquele dia preparavas-te para gritar, mas ao contrário dos outros, eu não estava enrolada no meu enorme toalhão de banho verde alface, mas sim despida. Já havia desembaciado a parte do espelho que me dava pela face, a fim de colocar o creme e fazer todas as outras trivialidades de quem acaba de sair da banheira. Olhaste para mim e abriste a boca, mas não gritaste. Espantado, não desviavas o olhar. Estranhei-te. Sempre tão descontraído... Mas naquele momento parecia que tinhas acabado de me conhecer, que me estavas a vislumbrar pela primeira vez. Atreveste-te a tocar-me no ombro despido e ainda húmido. Palmilhaste-me o corpo cuidadosamente, como quem não queria magoar-me, como quem queria conservar-me eternamente. Como quem embarca numa aventura até ao centro da terra, desceste com os lábios até ao meu pescoço. Continuei a olhar na direcção do espelho. Ver a tua excitação e o meu prazer espelhados por entre o vapor. Não me mexi. Não queria assustar-te. Sabia tão bem saber que não tinha passado ao estatuto de melhor amiga, que continuava a ser uma mulher em toda a plenitude que esta deve ser, com todos os luxos e desaires da sua condição. As tuas mãos de unhas roídas começaram lentamente a percorrer-me os braços, passando pelo meu ventre, pelas minhas costas, pelas minhas pernas. A tua boca caminhou um pouco mais e foi ao encontro da minha. Fomos até onde não sabíamos ser possível.

Nunca mais reclames comigo por causa do vapor na casa de banho.

Não gosto da sensação de sair do banho, limpar o espelho com a mão e não ter a tua imagem comigo.

Boa noite, até nunca.

"Já gostaste de alguém como gostas de mim?"
"Gostar é uma coisa relativa."
"Será que gostar de alguém é apenas válido quando é recíproco?"
"Claro que não. Tu gostas de mim e eu não gosto de ti."
"E achas que alguma vez vais gostar?"
"Não".

Desligaram a televisão que já só estava a emitir um qualquer ruído de fundo ensurdecedor, dobraram a primeira esquina do corredor e depois a segunda. Dentes lavados e pijamas vestidos.

"Boa noite, até amanhã".
"Dorme bem, se precisares de alguma coisa, acorda-me".

A porta fechou-se atrás de si e ele ligou a televisão de novo no canal das televendas. A noite quase se tornava dia lá fora. Ele só queria que ela adormecesse para não se preocupar. Acabou por adormecer antes que algum outro pensamento lhe passasse pela mente. O dia seguinte ia ser melhor, ia sempre ser melhor. Nunca era e o silêncio tomava o lugar da aliança de um casamento festejado para sempre.

E já lá vão três anos de portas a fecharem-se atrás dele e de noites passadas sozinha numa enorme cama de casal. E já lá vão três anos de vidas separadas num mesmo apartamento.