domingo, 22 de janeiro de 2012

Um bom vinho tinto


O percurso sempre se assumiu longo, mas não preocupante. Nunca preocupante, aliás. Sempre quis um namorado daqueles a sério, que prometem mundos e fundos e ficam para sempre. Vislumbravam-se três filhos, dos quais duas raparigas e um rapaz, todos com idade aproximada e educados com valores de bondade e pureza. Andariam em grandes faculdades e teriam grandes profissões, tal como o pai. A mãe, que também tinha tirado um curso superior acabaria a trabalhar em casa, atarefada entre roupa de cama, lanches para os miúdos e o engomar das suas fardas.
O barulho do comboio que passava quase por baixo de sua casa exactamente às mesmas horas todos os dias e noites, fez com que os seus pensamentos se dispersassem e só lá ficou ela, a olhar pela janela, para aquele mar de gente. Gente descuidada e apressada para nada, o nada que imaginava serem as suas vidas. Há medida que o estrondo do comboio se dissipava no ar, os pensamentos voltavam ao lugar para mais uma vez remexerem num passado que nunca chegou a acontecer, uma realidade paralela que outrora fora ideal. 
O presente não se dava ao luxo de fazer sonhar. Dava-se sim, ao luxo de fazer viver. Os dias eram passados em frente ao computador, onde era frequente ver-se uma janela que exibia relatórios de contas e outra aberta num qualquer tipo de rede social. De tempos a tempos, o chefe passava e gritava desesperadamente pelos ditos relatórios, ao mesmo tempo que a rede social emitia apenas silêncio, denunciando a falta de comunicação que ela tinha com o mundo. Cinco horas da tarde era a hora desde há muito escolhida para arrumar a secretária e sair. Os saltos altos que se seguiam meias de vidro pretas, ecoavam pelo grande parque de estacionamento subterrâneo, pelo qual todos os dias passava para pegar no carro e seguir para as infindáveis e imprevisíveis filas de trânsito até casa. Mais uma vez, a casa estava vazia e era também mais outra vez que ela desejava que alguém lá estivesse à sua espera, segurando dois copos de bom vinho tinto e uma panóplia de aperitivos. Isso sim, ‘isso conduziria a demoradas horas de conversas’. Costumava ler muito no tempo livre, mas não tinha com quem partilhar as suas conclusões e por isso aborreceu-se. Consigo mesma e com os livros, que pareceram perder o entusiasmo, que agora se concentrava constantemente na televisão. Nunca tinha ninguém específico em mente, apenas um alguém sem identidade. Era assim que pensava agora, mas nem sempre havia sido. Antes, os planos delineavam uma família de cinco, com muitas alegrias e poucos dissabores, numa casa virada para o mar, em que o sol nunca se punha cedo. Era esta a sua realidade paralela de um outro tempo, de outro espaço. Hoje, os pensamentos baixaram a fasquia e a família já não se queria de cinco, mas sim de dois. Não se queria uma casa virada para o mar, mas sim duas onde pudessem viver separados, juntando-se apenas para queimar horas que justificariam como ‘relaxantes’. Por mais que ela quisesse que isso fosse uma realidade intangível, não o era e ela sabia-o. Era possível como tantas coisas são, o problema estava no que as pessoas diziam. Veriam nela uma transgressora de regras impostas pelo tradicionalismo e conservadorismo que regulava o conjunto das suas amizades. Todos tinham casado e tido quatro ou cinco filhos. Vestiam-se as crianças de igual até estas terem idade para ripostar, tratavam a mamã e o papá por você e eram contratadas amas a tempo inteiro, ‘para que os meninos sejam sempre bem tratados’. 
Toda aquela teoria da família bem sucedida que tinha pena de quem seguia um caminho que não era considerado o certo, provocava-lhe náuseas e hoje em dia, sentia-se cada vez mais distante de tudo aquilo. Tão distante, que a vontade de comparecer aos banquetes educados e festas comedidas era pouca, quase inexistente e por vezes até nula. Todos pareciam ter crescido demasiado depressa, com medo que a maioridade se dissipasse.
Muitas eram as vezes em que dava por si deitada no sofá a sorrir, por se imaginar a interromper uma daquelas exageradamente elegantes festas, para fazer um discurso muito pouco adulto. Queria mostrar-lhes que estava viva e de boa saúde, que gostava do seu emprego, de onde morava e do seu companheiro sexual. Irritava-a toda aquela pose de quem tem os bolsos cheios de dinheiro e de inteligência porque no fundo, sabia que tudo aquilo fora provocado por uma série de azares, consequências que a cobardia abafou, vencendo o destino. O sorriso esvanecia-se em seguida, por pensar que todas essas palavras seriam bem merecidas, se não fossem mentira. 
Ainda assim, preferiu continuar a sorrir , ao lembrar-se de como seria o seu inabalável discurso. Com um copo de vinho na mão, arrepiou-se ao imaginar-se casada. Ainda assim, a sua espinha contorceu-se ainda mais ao pensar que ficaria sozinha. Encarava o casamento como uma cruz vitalícia, mas a solidão é que não, isso é que não.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Somos aquilo que vivemos

As coisas da vida não são muitas vezes baseadas em escolhas aleatórias. Raramente em favor daquilo que queremos, em detrimento do que precisamos. Não escolhemos o curso X porque não dá emprego, não escolhemos uma casa no campo porque um dia vamos precisar de viver na metrópole. Não escolhemos a pessoa Z porque não nos parece seguro. No final, acabamos com uma pessoa a quem até já nos conseguimos habituar, numa casa que não é o nosso lar e a trabalhar num qualquer tipo de coisa que odiamos. 
Isto é comodidade, não é felicidade. Há quem diga que a felicidade é subjectiva e que se aprende, mas eu não acredito nisso. O mais frustrante no meio disto tudo, é que um dia tivemos o descaramento de prever o futuro e o tiro saiu-nos pela culatra. 
Nunca tentem passar a perna ao futuro, porque há-de sempre saber mais que nós e acabar por se rir na nossa cara; Sempre que puderem, voltem atrás para fazer melhor. Tentem vezes sem conta, estoirem dinheiro a viajar pelo mundo inteiro, estudem o que mais vos interessa e ganhem dinheiro a fazer o que vos dá mais gozo. Escolham uma pessoa a curto-prazo, para uma relação a longo-prazo: as pessoas têm tendência para serem mais espontâneas quando as coisas parecem efémeras - têm tempo para se sentirem seguros e confortáveis quando estiverem no entas. Percam a cabeça com sentido e façam coisas das quais se vão lembrar para o resto da vida. Ponham de lado tudo o que é irrelevante e abram o jogo sempre só com o que importa. Existe sempre uma solução para tudo; pode é nem sempre ser a melhor. Sejam variados em todos os aspectos, tenham uma sede constante de informação e leiam boa ficção sempre que possível - embora todos os romances façam sonhar, só os bons fazem sonhar com qualidade. A monotonia é desde já inaceitável. 
Ah sim... Odeiem coisas previsíveis e pessoas previsíveis. Acima de tudo, odeiem futuros previsíveis na literatura, na música e no grande ecrã, porque são grandes motores intelectuais e se eles próprios nos ensinam mal, como podemos nós aprender bem? Odeiem as pessoas que prevêem o seu próprio futuro e odeiem-se a si mesmos, se o fizerem.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Nomeia-se quem deve

Realmente há com cada uma...! O programa 'Eixo do Mal' da SIC Notícias, que deu no passado sábado por volta da meia noite, resumiu o principal e mais grave mal da sociedade portuguesa e do seu governo: o clientelismo e os caciques que por cá existem. 'As nomeações' foram o assunto da ordem desta última semana (já nem digo do dia) e têm realmente muito que se lhes diga. Sempre munido da sua autoridade e da sua modéstia (que é nenhuma), Catroga afirma ter direito ao chorudo ordenado que vai começar a receber, agora que pertence à direcção da EDP, comprada recentemente pela empresa chinesa Three Gorges. Ora, tal como a já conhecida quadrilha do 'Eixo do Mal' disse, esta é uma das mais graves afrontas por parte do governo PSD, maior até do que o corte dos subsídios dos portugueses. Como não poderia deixar de ser, concordo plenamente com isto, que é uma terrível afronta. Porque há-de Catroga receber cinco e seis vezes mais do que muitos portugueses que se matam a trabalhar? Desconheço o tipo de trabalho que será por esta personagem desempenhado, mas duvido que exceda em muito, o de milhares de outras pessoas. 
Outra das questões que me fez pensar foi a constante troca de dirigentes de empresas que já é da praxe, no momento em que um novo governo é eleito. Nunca consegui perceber esta teimosia de trocar dirigentes, em favor do governo/partido vigente. Uns dizem que é deve ser feito sim senhora, em favor de uma maior coesão, se essas mesmas empresas forem de cariz público e outros dizem que não deve ser feito, porque apenas irá fortalecer as relações de clientelismo que todos nós já bem conhecemos. Favores são a moeda de troca mais usada em Portugal e se o euro acabar por desaparecer, o escudo não vai ser preciso, porque os favores são bem mais valiosos e conseguem muito mais coisas. Sábado disse-se que o problema de Passos Coelho são os dias de hoje, que são por si passados a pagar dívidas àqueles que o ajudaram a subir ao poder nas últimas legislativas. Assim, passa os dias fazendo favores e muitos deles vieram agora à tona, com todo o cenário das 'nomeações'. O mais escandaloso dos casos foi o de Manuel Frexes, antigo presidente da câmara do Fundão e devedor de vários milhões à Companhia das Águas de Portugal. Ora eis que se anteriormente era presidente de uma câmara devedora às águas de Portugal, Passos Coelho decide senão colocá-lo na direcção desta mesma companhia, provavelmente com o propósito de pagar a sua dívida em horas de trabalho, certamente. 
Situações como estas são altamente inaceitáveis e digo-o não como opositora ao partido - porque já de várias vezes concordei com algumas políticas do governo, que visam a estabilização das contas do país - mas como cidadã portuguesa. Actos como este levam-me a pensar que não resta esperança para aqueles que aqueles que são bons no que fazem, a não ser que tenham cunha. As cunhas são a nova moeda de entrada no mundo do trabalho, tanto para os mais jovens, como para os mais velhos.  Muitos de nós acabam por não mostrar os seus dotes de dirigentes, bons economistas ou advogados, em detrimento de favores e dívidas que Passos Coelho se acha no dever de pagar. Chato é que todos precisemos de ser filhos de pessoas como Catroga ou Frexes. Isso sim, é que é chato. 

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Entre quatro paredes

O tempo era só mais uma coisa. Uma coisa, insignificante, tão pequena! De todas as coisas que importavam, o tempo não era uma delas. As palavras sim, eram importantes, cruciais até. Faziam do mundo um lugar melhor e pior, simultaneamente. Afectavam relações e a forma como funcionavam, eram elas que ditavam tudo. Deitado na cama, pensava que os homens eram demasiado básicos e que era por isso mesmo que as mulheres não os percebiam. 'Complicada como ela é, vai achar que quero acabar tudo', mas não era isso que ele queria. Ele queria saber, saber o que esperava dela a longo prazo, mas bem sabia que as relações não eram coisa de ser pensada a longo prazo. Um dia de cada vez sempre foi o seu lema de vida, mas a vontade que tinha de a agarrar, de a beijar e de simplesmente estar com ela, fazia-o duvidar da veracidade desse lema. Estar com ela era o que ele queria, mas não tê-la se não fosse para durar, isso já não era vida para ele, 'isso é coisa de putos, de gente imatura'. Era agora ou nunca. Ou ia querer para sempre, ou nunca mais ia querer. Ou melhor dizendo, nunca mais ia poder querer. Sim, porque depois de ditas as palavras, não há como voltar atrás, isso ele sabia e nada ia mudar. Ele já sabia. Ela ia dizer não e uns meses mais tarde ia arrepender-se, ia ter noção do que perdeu e nessa altura, mesmo que ele estivesse sozinho (sim, porque ela era a única que ele queria para sempre), não ia aceitá-la, porque nada podia interferir entre si e o seu orgulho. 
'Finalmente!', exclamou quando a campainha tocou, ao mesmo tempo que o seu estômago se contorcia ao pensar que seria ela à porta e o que responderia quando ele perguntasse. De repente, viu-se preso num cenário horrível e só as palavras o podiam resgatar. Ela estava sentada com as pernas cruzadas, posição típica que tomava sempre que chegava àquela casa. Estava descontraída, à espera de mais do mesmo, de mais daquilo que sempre foi, de mais paixão assolapada e de nada mais. Pegou no comando para ligar a televisão, mas ele impediu-a. Agarrou-lhe o braço e calmamente, colocou o comando na mesinha de centro. Estranhou, mas não se mexeu para o buscar. Ele encheu-se de coragem, de toda aquela que conseguia imaginar e pensou de depois de proferir as palavras, nada mais podia fazer senão ouvir. Mas agora não, agora restava-lhe falar e não ouvir. Disse tudo, tudo o que sentia e tudo o que não sentia. O que queria dela e dele, o que planeava para os dois, aquilo que via ser a felicidade de 'um dia'. A palavra sagrada não foi dita, porque esperava a resposta dela.
Serena como sempre foi, olhou-o nos olhos, como quem diz 'estás louco, o que andaste a beber antes de eu chegar?'. Soltou uma gargalhada tão verdadeira, que ele próprio começava a acreditar que estava a delirar. Manteve-se calado, esperando a tal resposta. Percebeu, ela finalmente percebeu. Que era a sério e que infelizmente para si, era para sempre. Ele falou-lhe de viajarem e de viverem juntos e ela só conseguia imaginar a vida a dois entre as quatro paredes que eram o quarto dele, numa cama que sempre foi deles, que estava para sempre manchada com o suor de uma paixão que ela não queria que passasse mesmo disso, de uma paixão. Sempre foi serena, mas agora estava assustada e com medo, um medo que a sugava para dentro de si mesma, que a corroía e a mandava fugir. Levantou-se abruptamente e só disse 'eu não consigo fazer isto agora. Agora não dá', dirigindo-se para a porta e impedindo sempre que os seus olhares se cruzassem. Agora era ele que estava sereno. Sereno por ter explodido de palavras, aquelas que sempre quis dizer enquanto ela só queria a paixão. Ele pegou então no comando e ligou a televisão. Deitou-se no sofá enquanto o bater forte da porta ecoava pela casa. Não lamentava nada, mas gostava. Gostava de poder lamentar, mas não o fez porque sabia que não tinha esse direito. Tinha dito tudo o que queria e ela tinha ouvido aquilo que não queria. Não queria pensar mais nisso, mas os pensamentos assombravam-no e ensurdeciam as vozes da série televisiva. Entre pensamentos e vontade de lamentos, a campainha voltou a soar. Seria certamente o carteiro que trazia uma encomenda. Abriu a porta e sentiu-se de novo vivo. Ela voltou para pedir desculpa. Por tudo aquilo que não disse e não fez, por tudo aquilo que lhe fazia ter medo. Cruzou os olhos propositadamente e mais nada a parou, nem o sentimento de arrependimento que pensou ter nos momentos a seguir. Aquele quarto que sempre foi deles, cheio daquela paixão só deles, fê-la perceber que havia mais do que aquele quarto. O tempo que passavam na cozinha a jantar, na sala a conversar e na casa de banho a partilhar momentos de higiene entre a lavagem dos dentes e um duche rápido fê-la perceber que havia mais do que a paixão. E foi por isso mesmo que a seguir pegou no comando, desligou a televisão e permaneceu naquele 'ali' que agora era todo só deles, naquele conjunto de paredes que não eram só quatro e que não continham só paixão.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Pedra no sapato

Nem todos os dias eram maus. Nos dias em que ele se lembrava de a mimar e dizer 'amo-te', tudo corria bem, mas o problema estava na periodicidade com que esses dias apareciam. Um pouco como ele, eram raros. Eram escassos e essa era a razão pela qual ela os aproveitava ao máximo, sem questionar nem ripostar. Acreditava que se ripostasse, tudo iria por água abaixo e os dias que eram raros, tornavam-se inexistentes, embora ela soubesse. Dentro de si, rugia um ódio enorme por todas aquelas que eram melhores que ela, que ocupavam o resto dos dias e que não conheciam a escassez, mas sim a abundância de tempo. Assim, os seus dias eram passados a pensar como seria da próxima vez, se seria melhor que da primeira, se ele se lembraria dela para sempre. Tinha um emprego que lhe agradava, mas precisava sempre daquele ponto final, aquele pequeno e aparentemente insignificante ponto final que faz com que os dias pareçam melhores, só porque sim. E depois voltava a lembrar-se. O ponto final era também um pedra no seu sapato e em vez de se querer lembrar dele como parte da perfeição, queria lembrar-se dele como isso mesmo, uma pedra no sapato, dispensável e descartável. Então era assim que o enfrentava, era assim que todos os dias lhe abria a porta, com uma forçada indiferença que gritava 'eu não gosto de ti'. E a verdade era mesmo essa: ela não gostava dele, apenas gostava muito da ideia que havia feito dele, já no início daquela paixão. Embora ela soubesse que as outras iam ser sempre melhores do que ela, iam sempre agradar mais ao olhar, iam sempre mostrar ser mais inteligentes, mais modernas. No fundo, iam sempre ser mais mulheres, mais dignas de estar com ele do que ela alguma vez ia conseguir sequer parecer ser. 'Um dia deixas de existir para mim, faço de conta que morreste', imaginava-se dizendo, sempre que fumava um cigarro esticada na cama. O fumo dava vontade de divagar e pensar como seria se estivesse noutro espaço, noutro tempo. Como seria se lhe dissesse para nunca mais voltar, que estava tudo acabado. E impreterivelmente vinham os outros pensamentos... Como seria se ele também estivesse, tal como ela, noutro espaço, mas no mesmo tempo? Não se cansava de imaginar o quão felizes seriam. O cigarro apagava-se num dos intervalos entre os pensamentos e a mente voltava-se de novo para o trabalho, aquele que lhe ocupava dias quase inteiros. Ela ficava imersa numa onda de contas e de planos de publicidade e prazos apertados para a invenção de slogans de uma nova máquina de lavar roupa. Hoje em dia, ainda pensa 'como seria', esquecendo-se sempre que 'um dia' ia abandonar a imagem dele da sua mente. Feliz ou infelizmente, nem ontem nem hoje foi o dia. De uma forma ligeiramente distorcida, ele fá-la feliz, porque lhe mostra que existe felicidade para além da publicidade. Hoje ele fê-la feliz. "Talvez amanhã seja diferente, talvez amanhã a escassez não me chegue, talvez perceba que a traição não é coisa pequena, que é aflitivo estar na sala com ele e mais dez mulheres, todas elas invisíveis, mas dolorosamente presentes", pensou. Tal como o fumo do cigarro que se preparava agora para acender, todos esses pensamentos de um futuro melhor se desvaneceram como sempre acontece, para darem lugar a uma esperança que não dá frutos. Como sempre acontece.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Parar é morrer

Pensou em não pensar. Em não querer. Depois pensou que melhor que pensar que não queria, era pensar que não podia. 'Se não puder mesmo, então não vale a pena querer', mentalizou. No seu interior, os pensamentos não paravam de esvoaçar, de se cumprimentarem uns aos outros como se nada fosse. E o problema estava nisso mesmo; é que não eram apenas projectos mentais, eram muito mais do que isso. Assombrava-a a ideia de ter que parar porque nunca o fez. Sempre foi aquele tipo de pessoa que nunca parava para pensar e tudo saía automaticamente e curiosamente certo, sempre certo à primeira. Mas finalmente aconteceu, sem mostrar sintomas nem assinalar a sua chegada. O dia em que não parou e nada saiu certo à primeira.. Nem à segunda nem terceira. Desde o momento que descia o lobby do prédio, até que se deitava já de madrugada, debaixo do edredon de penas, tudo era como sempre foi e a rotina era um dado adquirido. Os dias passavam a correr e não havia lugar para intervalos. A vida dela não tinha intervalos. Era como um daqueles filmes dos cinemas Lusomundo. Naquele dia, a rotina pregou-lhe uma rasteira e ela não soube saltar por cima. Caiu de cara num chão que era a realidade de quem não planeia, daqueles que jogam pelo inseguro e não pelo seguro. A multidão amontoava-se a um ritmo frenético e ouviam-se vozes 'Acho que foi um carro. Veio com velocidade e passou-lhe por cima, mesmo quando ela estava a sair do prédio'. Não mexia os membros e não mexia os lábios esfolados e ensanguentados. Os pensamentos jorravam sem querer parar e o sangue sujava o alcatrão enquanto os segundos passavam. O brilho dos seus olhos foi-se desvanecendo, bem como os pensamentos. Despediram-se uns dos outros para nunca mais voltarem.
Um dia quis parar. Esse dia finalmente chegou e ela só queria poder não parar. 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Sabe a soul e cheira a funk




Dizem-se “portugueses de uma cidade chamada Lisboa, num continente chamado Europa, num planeta chamado Terra”. Querem criar um novo percurso dentro da música portuguesa e são uma lufada de ar fresco acompanhada de ritmos de jazz e hip hop. Os membros da banda portuguesa Orelha Negra conheceram-se ao longo das digressões de Sam The Kid por Portugal e o primeiro álbum da banda saiu para as ruas em 2010 com o mesmo nome. “Orelha negra” é baseado em sons do soul e funk dos anos 60 e 70 com ritmos de hip hop e sampling à mistura.
Em entrevista ao site www.bodyspace.pt, Fred Ferreira (dos Buraka Som Sistema) e o DJ Cruzfader explicaram que o curso das músicas não é planeado, é tudo feito de improviso, o que dá fluidez e continuidade às faixas do álbum, lembrando um pouco aqueles que fazem jazz. “Orelha negra” é o primeiro e único álbum conhecido da banda de nome homónimo. As músicas falam de amor, amizade, mágoa e de uma saudade muito portuguesa. Para o sampling, os membros optaram por escolher registos de que não se estaria à espera: a voz de Fernando Tordo ou do apresentador televisivo Júlio Isidro. “Memória” (a primeira música do álbum) é um manifesto que marca bem a mensagem dos Orelha Negra e, segundo Rafael Santos, crítico do site bodyspace, “é a esperança na
lembrança e no melhor que a alma tem para dar” ao mais exigente dos melómanos. Ainda na entrevista ao site de crítica musical, a banda disse apreciar a ideia de semi-anonimato por achar que “cria um distanciamento das pessoas e uma aproximação mais directa da música”. Para reforçarem esta ideia, os Orelha Negra decidiram usar a técnica de ‘sleeveface’ para a capa do disco de estreia: ninguém é quem na realidade lá está. O grupo criou mais de 80 esboços iniciais antes de escolher as 12 faixas que deram origem ao álbum. As músicas da banda de Sam The Kid, Fred Ferreira (Buraka Som Sistema), Francisco Rebelo, João Gomes (Cool Hipnoise) e DJ Cruzfader não têm um contexto ou tema específico, mas o ritmo está bem presente. Durante a entrevista, Fred Ferreira disse que embora seja complicado atrair público através de algo mais instrumental que vocal, o feedback tem sido bastante positivo, e a verdade é que o estilo e o ritmo próprio da banda já começam a ser identificados pelo público que está na linha da frente dos concertos de Verão. Rafael Santos diz ainda que o disco de estreia dos Orelha Negra é “mais que o mero desfile de pedaços de história captados pelo equipamento que revolucionou as técnicas de produção musical. Há uma dinâmica ‘live’ que reforça a missão do colectivo na divulgação da missiva”. Estamos de acordo. Perguntaram aos membros da banda o que fariam se tivessem de escolher entre só gravar discos ou só dar concertos. Resposta? Dizem que preferiam gravar um álbum ao vivo. Ainda que não seja gravado ao vivo, a banda de Sam The Kid e DJ Cruzfader já está a preparar o próximo disco, para dar a conhecer já este ano.

PUBLICADO NA EDIÇÃO DE 19 DE AGOSTO 2011 DO JORNAL PONTO FINAL

Let's give it to Annie

Anne Hathaway está cada vez mais versátil nos papéis que tem vindo a desempenhar. Gostava dela, mas entretanto armou-se em boazinha em 'Alice in Wonderland', e acabei por ficar aborrecida. Depois veio a sua fase de predadora sexual, com 'Love and Other Drugs' e eu voltei a apaixonar-me pela sua forma de representar. Juntamente com Jake Gyllenhaal, lutam por uma boa qualidade de vida (se é que assim se pode chamar) de uma mulher com Parkinson, que é representada pela então inovadora e surpreendente nova faceta da actriz Anne Hathaway. Depois de muito choro compulsivo e lenço usado, achei que estava na altura de ver uma coisa assim mais ligeira, menos cheia de drama e melancolia. Ai.. quão enganada estava eu... 'One Day' acabou por ser o romance mais bonito e mais dramático que alguma vez vi. No final recomeçou o choro (quando virem o filme, vão perceber que não é defeito meu) e eu continuava sem perceber bem onde estava a beleza que tanto me havia entusiasmado o filme inteiro, ou seja, não sabia distinguir que parte ou que característica haveria no filme para eu ter gostado tanto. E finalmente percebi: Não é apenas uma coisa, são várias. Estão a ver as paisagens que todos elogiam em 'Eat, pray and love'? E as pracetas e sotaques europeus, próprios de todos os filmes de espionagem onde existe gente francesa e britânica? Bem, e um pouco como em todos os dramas românticos, não deixa de faltar muito amor e coisas que tal. E não é que quando o espectador já está farto de tanto mel, a coisa apimenta com um pouco de erotismo fugaz, festas e bebedeiras? A início, a música parece ser um dos carrascos do filme, por ter traços de melancolia e tristeza, mas de repente, começam a ecoar algumas boas músicas conhecidas, como uma ou outra dos soon to perform at Lux Frágil, Fatboy Slim. Para tornar o visionamento desta peça num momento delicioso de cinema, falta ainda dizer que a linha cronológica traçada em '500 Days of Summer' também existe, o que impede que o filme se torne vazio, sem sentido temporal - não posso deixar de dizer que a caracterização das décadas representadas, também está brilhantemente feita.
Bem, correndo o risco de desembuchar dois ou três spoilers, deixo-vos apenas o trailer e garanto que se estiverem virados para o gasto desmesurado de kleenex, então 'One Day' é o drama ideal.




terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Diz-se que é uma espécie de Apartheid


Israel está a ver um retrocesso no pensamento social dos seus cidadãos, com o grupo de judeus ultra-ortodoxos a criar cada vez mais conflitos. Mais grave do que a vontade de afirmação por parte de um grupo, é aquilo que esse grupo quer afimar. "Os fundamentalistas querem as mulheres sentadas na parte de trás dos autocarros, que caminhem em passeios específicos e façam compras em determinadas horas, práticas rejeitadas pela principal corrente judaica", avançou a Euronews. Quando ouvi as notícias mais recentes, não estava a compreender muito bem o que estava a ser dito e acho que em grande parte, porque não queria acreditar que tal podia acontecer em pleno século XX. Um grupo de fundamentalistas religiosos diz ter vontade 'legítima' que as mulheres sejam segregadas socialmente, dando a entender que são portanto, o sexo mais fraco, quase insignificante. Parece que o novo método de segregação dos ultra-ortodoxos é feito por via da vassourada, atitude com pés e cabeça, com certeza. Seria de esperar que hoje em dia, este tipo de pensamentos fossem já impensáveis, devido aos avanços sociológicos que têm ocorrido nas últimas décadas. Uma das etapas históricas a não seguir como exemplo, deveria ser o Apartheid e sinceramente, foi para isso que me remeteu automaticamente, estas recentes manifestações por parte dos fundamentalistas. Para além da marginalização da mulher, outros ideais muito pouco característicos daquilo que conhecemos como 'democracia', se erguem. O nazismo e a consequente opressão dos judeus foi trazida até ao presente, através de um 'teatro' muito pouco feliz, por parte desta facção mais extremista dos judeus. Ora que o cenário era o seguinte: Crianças vestidas com as indumentárias usadas pelos judeus nos campos de concentração de Hitler, juntamente com a típica estrela que os distinguia. Na minha opinião, esta foi a forma mais triste e agressiva de manifestação de interesses e ideais. Está a causar grandes tumultos no seio da população israelita, que se julgava relativamente livre - dentro do possível e excluindo a luta eterna com os palestinianos - e a criar um sentimento de insegurança e principalmente, de retrocesso social. A gravidade desta situação está precisamente nesse tal retrocesso social, parecendo-se muito com o Apartheid. Sempre existiu esta facção mais radical, mas nunca tiveram tanta importância como hoje em dia e isso é que é preocupante, porque implica uma diminuição notória da situação das mulheres, coisa que está mais do que estabelecida e estabilizada em quase todos os países livres. Mulheres ocidentais vêem-se no meio de uma encruzilhada, entre o direito de terem a liberdade que sempre tiveram e o medo e insegurança de viver no seio de uma população dividida pela religião. Este problema pode até ser visto de uma perspectiva 'irónica', tendo em conta que todos os judeus sofreram com o regime nazi e todos deveriam ser complacentes com a liberdade e direitos aplicáveis a todos os seres humanos, mas na verdade, os ultra-ortodoxos estão, ainda que de outra forma e através de base ideológicas diferentes, a segregar e marginalizar na mesma. 
As minhas conclusões levam-me a pensar que existem um padrão quanto à marginalização. E será que existe mesmo?
Uns distinguem, e condenam 'raças', em favor do ideal de uma 'raça pura' ou em favor da 'raça branca', outros marginalizam e segregam um dos sexos, por o considerarem inferior. Continuam sem encontrar um padrão?