domingo, 22 de janeiro de 2012

Um bom vinho tinto


O percurso sempre se assumiu longo, mas não preocupante. Nunca preocupante, aliás. Sempre quis um namorado daqueles a sério, que prometem mundos e fundos e ficam para sempre. Vislumbravam-se três filhos, dos quais duas raparigas e um rapaz, todos com idade aproximada e educados com valores de bondade e pureza. Andariam em grandes faculdades e teriam grandes profissões, tal como o pai. A mãe, que também tinha tirado um curso superior acabaria a trabalhar em casa, atarefada entre roupa de cama, lanches para os miúdos e o engomar das suas fardas.
O barulho do comboio que passava quase por baixo de sua casa exactamente às mesmas horas todos os dias e noites, fez com que os seus pensamentos se dispersassem e só lá ficou ela, a olhar pela janela, para aquele mar de gente. Gente descuidada e apressada para nada, o nada que imaginava serem as suas vidas. Há medida que o estrondo do comboio se dissipava no ar, os pensamentos voltavam ao lugar para mais uma vez remexerem num passado que nunca chegou a acontecer, uma realidade paralela que outrora fora ideal. 
O presente não se dava ao luxo de fazer sonhar. Dava-se sim, ao luxo de fazer viver. Os dias eram passados em frente ao computador, onde era frequente ver-se uma janela que exibia relatórios de contas e outra aberta num qualquer tipo de rede social. De tempos a tempos, o chefe passava e gritava desesperadamente pelos ditos relatórios, ao mesmo tempo que a rede social emitia apenas silêncio, denunciando a falta de comunicação que ela tinha com o mundo. Cinco horas da tarde era a hora desde há muito escolhida para arrumar a secretária e sair. Os saltos altos que se seguiam meias de vidro pretas, ecoavam pelo grande parque de estacionamento subterrâneo, pelo qual todos os dias passava para pegar no carro e seguir para as infindáveis e imprevisíveis filas de trânsito até casa. Mais uma vez, a casa estava vazia e era também mais outra vez que ela desejava que alguém lá estivesse à sua espera, segurando dois copos de bom vinho tinto e uma panóplia de aperitivos. Isso sim, ‘isso conduziria a demoradas horas de conversas’. Costumava ler muito no tempo livre, mas não tinha com quem partilhar as suas conclusões e por isso aborreceu-se. Consigo mesma e com os livros, que pareceram perder o entusiasmo, que agora se concentrava constantemente na televisão. Nunca tinha ninguém específico em mente, apenas um alguém sem identidade. Era assim que pensava agora, mas nem sempre havia sido. Antes, os planos delineavam uma família de cinco, com muitas alegrias e poucos dissabores, numa casa virada para o mar, em que o sol nunca se punha cedo. Era esta a sua realidade paralela de um outro tempo, de outro espaço. Hoje, os pensamentos baixaram a fasquia e a família já não se queria de cinco, mas sim de dois. Não se queria uma casa virada para o mar, mas sim duas onde pudessem viver separados, juntando-se apenas para queimar horas que justificariam como ‘relaxantes’. Por mais que ela quisesse que isso fosse uma realidade intangível, não o era e ela sabia-o. Era possível como tantas coisas são, o problema estava no que as pessoas diziam. Veriam nela uma transgressora de regras impostas pelo tradicionalismo e conservadorismo que regulava o conjunto das suas amizades. Todos tinham casado e tido quatro ou cinco filhos. Vestiam-se as crianças de igual até estas terem idade para ripostar, tratavam a mamã e o papá por você e eram contratadas amas a tempo inteiro, ‘para que os meninos sejam sempre bem tratados’. 
Toda aquela teoria da família bem sucedida que tinha pena de quem seguia um caminho que não era considerado o certo, provocava-lhe náuseas e hoje em dia, sentia-se cada vez mais distante de tudo aquilo. Tão distante, que a vontade de comparecer aos banquetes educados e festas comedidas era pouca, quase inexistente e por vezes até nula. Todos pareciam ter crescido demasiado depressa, com medo que a maioridade se dissipasse.
Muitas eram as vezes em que dava por si deitada no sofá a sorrir, por se imaginar a interromper uma daquelas exageradamente elegantes festas, para fazer um discurso muito pouco adulto. Queria mostrar-lhes que estava viva e de boa saúde, que gostava do seu emprego, de onde morava e do seu companheiro sexual. Irritava-a toda aquela pose de quem tem os bolsos cheios de dinheiro e de inteligência porque no fundo, sabia que tudo aquilo fora provocado por uma série de azares, consequências que a cobardia abafou, vencendo o destino. O sorriso esvanecia-se em seguida, por pensar que todas essas palavras seriam bem merecidas, se não fossem mentira. 
Ainda assim, preferiu continuar a sorrir , ao lembrar-se de como seria o seu inabalável discurso. Com um copo de vinho na mão, arrepiou-se ao imaginar-se casada. Ainda assim, a sua espinha contorceu-se ainda mais ao pensar que ficaria sozinha. Encarava o casamento como uma cruz vitalícia, mas a solidão é que não, isso é que não.

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