segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Pedra no sapato

Nem todos os dias eram maus. Nos dias em que ele se lembrava de a mimar e dizer 'amo-te', tudo corria bem, mas o problema estava na periodicidade com que esses dias apareciam. Um pouco como ele, eram raros. Eram escassos e essa era a razão pela qual ela os aproveitava ao máximo, sem questionar nem ripostar. Acreditava que se ripostasse, tudo iria por água abaixo e os dias que eram raros, tornavam-se inexistentes, embora ela soubesse. Dentro de si, rugia um ódio enorme por todas aquelas que eram melhores que ela, que ocupavam o resto dos dias e que não conheciam a escassez, mas sim a abundância de tempo. Assim, os seus dias eram passados a pensar como seria da próxima vez, se seria melhor que da primeira, se ele se lembraria dela para sempre. Tinha um emprego que lhe agradava, mas precisava sempre daquele ponto final, aquele pequeno e aparentemente insignificante ponto final que faz com que os dias pareçam melhores, só porque sim. E depois voltava a lembrar-se. O ponto final era também um pedra no seu sapato e em vez de se querer lembrar dele como parte da perfeição, queria lembrar-se dele como isso mesmo, uma pedra no sapato, dispensável e descartável. Então era assim que o enfrentava, era assim que todos os dias lhe abria a porta, com uma forçada indiferença que gritava 'eu não gosto de ti'. E a verdade era mesmo essa: ela não gostava dele, apenas gostava muito da ideia que havia feito dele, já no início daquela paixão. Embora ela soubesse que as outras iam ser sempre melhores do que ela, iam sempre agradar mais ao olhar, iam sempre mostrar ser mais inteligentes, mais modernas. No fundo, iam sempre ser mais mulheres, mais dignas de estar com ele do que ela alguma vez ia conseguir sequer parecer ser. 'Um dia deixas de existir para mim, faço de conta que morreste', imaginava-se dizendo, sempre que fumava um cigarro esticada na cama. O fumo dava vontade de divagar e pensar como seria se estivesse noutro espaço, noutro tempo. Como seria se lhe dissesse para nunca mais voltar, que estava tudo acabado. E impreterivelmente vinham os outros pensamentos... Como seria se ele também estivesse, tal como ela, noutro espaço, mas no mesmo tempo? Não se cansava de imaginar o quão felizes seriam. O cigarro apagava-se num dos intervalos entre os pensamentos e a mente voltava-se de novo para o trabalho, aquele que lhe ocupava dias quase inteiros. Ela ficava imersa numa onda de contas e de planos de publicidade e prazos apertados para a invenção de slogans de uma nova máquina de lavar roupa. Hoje em dia, ainda pensa 'como seria', esquecendo-se sempre que 'um dia' ia abandonar a imagem dele da sua mente. Feliz ou infelizmente, nem ontem nem hoje foi o dia. De uma forma ligeiramente distorcida, ele fá-la feliz, porque lhe mostra que existe felicidade para além da publicidade. Hoje ele fê-la feliz. "Talvez amanhã seja diferente, talvez amanhã a escassez não me chegue, talvez perceba que a traição não é coisa pequena, que é aflitivo estar na sala com ele e mais dez mulheres, todas elas invisíveis, mas dolorosamente presentes", pensou. Tal como o fumo do cigarro que se preparava agora para acender, todos esses pensamentos de um futuro melhor se desvaneceram como sempre acontece, para darem lugar a uma esperança que não dá frutos. Como sempre acontece.

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